Pular para o conteúdo principal

Por um instante

Na verdade eu sei o que afligia aquele ser. Era algo comum. Ele batia as asas, ele rodopiava, ele caía. Ele atentava-se ao mais profundo horizonte, donde uma pétala flutuava, e ele ainda permanecia atento, sem nenhum descuido; não perdia de vista aquela pétala caindo. Suas antenas enchiam-se de gostas d'água e o cheiro mudava de aroma. Parecia mais Rosácea, mas na verdade era Laureácea, uma linda flor de Persea americana. Uma noite de cheiros de abacateiro e uma pétala saída daquela corola intermitente, que instigava a mente e que deixava àquele de coração no soalho de tua casa.

Dependurado à alvissareira, num mastro cheio de pássaros ousados delirantes e cheios de cantoria, era ele mesmo, próprio, quem derramava as gotas de água, de lágrimas, de choro, de sentimentos; de, talvez, angústias. Uma pata mexia as barbatanas - antenas -, a outra sacudia seus ocelos ainda descoloridos. Eu o via e sentia que aquela pobre criaturinha, cheia de santidade, olhava-me de soslaio ainda que impertinente, ainda com receio, mas que, aos poucos, foi se doando a mim, foi se envolvendo e contornando seu medo ao conforto do meu colo. Eu já me rendia aos seus afagos deliberadamente leves e muito sutis, até que a palmeira onde estava perfurou-me a veia e uma gota de sangue cobriu-lhe a cabeça, e aí eu perdi aquele bichinho de vista; aquela pobre criaturinha que eu estava estimando mutuamente. Já fazia parte, até, do meu coração. 
Senti-lo foi o mais árduo dos meus sentimentos, compreendê-lo me trouxe a humanidade; poder partilhar de sua carência me fez ver o quanto de amor há num ser tão imperceptível. O pequeno era frágil e morreu. Mas eu soube que por um instante dei-lhe o conforto que ele tanto queria, enquanto olhava fixamente àquelas pétalas que caíam no horizonte.


Somos uma ampulheta viva em que o sangue escorre até onde o sentimento aguenta.




Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

O que dizer de João de Barro de Maria Gadú?

E o que dizer dessa música maravilhosa de Maria Gadú? JOÃO DE BARRO Todas as vezes que a ouço, deito-me em meus devaneios Alusões são infalíveis em minha mente As paixões ressurgem num compasso desenfreado As promessas se esvaem, nada mais me importa. Encontro-me deitado, numa palpável dor sem motivo Talvez uma loucura, uma insanidade de minha mente Me acarreta numa impassiva e contagiante melancolia Tudo isso acontece quando ouço esta música, Esta simples e maravilhosa canção  Que me deixa de queixo no  chão Que me fez até construir rimas, rimas estas Que expressam os sentimentos quando a ouço Mesmo que tamanha seja a dor... TODAVIA...

PaReCe Que...

Fotografia do próprio autor deste blog, Bruno Silva, tirada no Museu da Imigração do Estado de São Paulo.  Olho a porta entreaberta, vejo a mulher mais importante da minha vida. Ela está ali, mais uma vez, varrendo o chão, cuidando, distribuindo amor. Ela está ali, mais uma vez, realizando aquilo que mais ama, me inspirando, inspirando os outros ao seu redor. 

cuidado...

Já me falavam sobre sentimentos... Não só uma pessoa, mas algumas me falavam. Até porque poucas pessoas sabem o que são sentimentos. Fui vivendo, aprendendo cada um deles. O mais interessante de todos foi o cuidado, e eu, antes de tomá-lo, acreditava que cuidado não era sentimento. Porém, aprendi a senti-lo: sentir cuidado.