Numa noite escarlate veio um cenho que estava mais trancado que qualquer fechadura. Era uma abstração mental pensar o quanto podemos ser diferentes, a depender do dia, do horário e das circunstâncias. Somos e sempre seremos etéreos. Bom, o cenho estava mais inóspito que qualquer outra coisa. O deserto do Atacama estava melhor apresentado que as rugas infindas. Pensar no quanto somos lentos, obscuros, cheios de moralidades desnecessárias é cair e se trancar em um subterfúgio paralelo. Quase a Caixa de Pandora, pronta para nos abduzir e nos castigar dentro de seu leito trêmulo. Uou!! - Onopatopeia.
De um lado estava a casa dos seus pais, verde-limão, clássica. Do outro, a rua vazia que tanto tomava para caminhar nas noites claras, quando a lua resplandecia uma chama quente que mais abrilhantava sua careca do que qualquer outra atmosfera. Um ecossistema estava prestes a se formar, não sabia se era pó, se eram gotas - ou sei lá o que era. Poeira sempre foi mais sensato. O cosmo era benevolente em certos momentos, que até dona Marta, a de meia idade, trazia lembretes auspiciosos para compor a noite daquele Natal.
Sim, era Natal. A data era uma coisa morta e sem necessidade de festas ultrajes; era melhor saciar a fome como em dias comuns, a buscar falência das relações familiares. Nem tão bom, nem tão ruim, apenas único como era para a maioria dos cristãos que se dedicavam a fazer banquetes enormes, cheios de cheiros, gostos, e a famosa uva-passa. Ultrapassado estava Godo, de Godofredo, que tinha esse nome só porque a sua mãe o achava digno de bondade. Isso na cabeça dela. Godo era muito infeliz. Mais infeliz que o resto da família que mentia ser uma coisa, mas nos contratempos, era demasiadamente outra. Isso, na verdade, acontecia em todas as famílias deste país - o que não falta é gente achando que é gente, mas está aquém da compreensão humana. É de uma tolice infindável. Grotesca, seria mais expressiva.
A família reunida, o sopão da dona Elvira quente, mas muito quente, que nem parecia palatável, mais assemelhava-se a um bom desentupidor de ralos, ou mata bactérias a altas temperaturas. Daria dó só de imaginar tomar aquela sopa abrasiva.
Godo deu um jeito de sair da sala de jantar e se juntar a duas crianças mimadas que brincavam com selos, coisas que até o presente momento era surpreendente, porque celulares e tablets tomavam conta da garotada rebelde mais que qualquer outro estímulo de vida. Era quase uma marca na pele que não sairia tão breve, ou nunca mais sairia.
Em um rompante, Godo se viu atordoado em meio a tantos sorrisos desmantelados, alguns mais amarelos que outros, que resolveu sair à casa e deixar o celeiro pros que tinham estômago. Apesar do nome incompreensível, o céu guardava uma sombra boa. Era melhor que o sol de verão, que pra tropicalidade em questão, era de gotejar o rosto o dia todo. Bom mesmo era ser rico e ter um refrigerador para acalmar o sangue que corria mais rápido e célere em épocas de calor. Que calor.
A lua...
Não seria ele se não ouvisse os sons que vinham de dentro e que pudessem traduzir-se em contemplação à lua. O meteorito imóvel, transplanetário, satélite natural do nosso sistema, era de uma beleza que o enchia o sangue - muito mais que elementos figurados. Isso sim era mover-se de um lado pro outro em uma refrescante brisa terrestre que vinha via sul ou via norte, mas que trazia algum sentido ao sentar-se numa rocha grande - menos dura que o coração de muitos e mais dura ao que deveria ser rígido.
Claro que daqui alguns instantes alguém sentiria a sua ausência, mas não sentiria saudades, o sentir era de fazer questão de compartilhar a mazela daquele encontro com mais um. O sentimento era tão pesado que a hipocrisia não dava conta de se manter sozinha. Era melhor compartilhar. Portanto, aproveitando seus poucos minutos de arrefecimento, deitou-se no gramado verde-escuro, devido à ausência das luzes do sol, e começou a contar as estrelas que ainda existiam. Pensar em contar estrelas é muito lunático, mas contá-las nos dá uma boa estimativa de quanto tempo ainda temos neste planeta. O que era pouco. Muito pouco.
Desejar um mundo diferente era quase um conto de fadas mas sem a mente maquiavélica de uma criança; era melhor sofrer mesmo, daí o real se instalava de uma vez e não sairia jamais.
Com um pouco de sono, Godo viu uma cadeira de rodas vindo em sua direção. Logo se questionou "Mas quem poderia ser nessa locomoção lenta, cairá aqui, nesse terreiro inigualitário?".
Dona Elvira trazia um prato de sopa para compartilhar a desgraça daquele evento. Quanta austeridade, quanta morte em cenhos sorridentes. Era mesmo uma falência múltipla de órgãos.
Godo se aboletou próximo à cadeira, tomou o prato, esperou alguns minutos, e fez jus a uma boa sopa fria, que era menos fria que o coração de muitos, e mais quente do que aquilo que precisava ser.
Feliz Natal!
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